Podemos partilhar conhecimentos, mas não a sabedoria. Podemos encontrá-la, podemos vivê-la, podemos ganhar importância com ela, podemos fazer maravilhas com ela, mas não podemos comunicá-la e ensiná-la. Foi isto que por vezes pressentia, quando ainda era um aprendiz, aquilo que me afastou dos mestres. Descobri uma ideia, Govinda, que tu tomarás por troça ou por loucura, mas que é a minha melhor ideia. É assim: para cada verdade, o contrário é igualmente verdade! Mais concretamente: uma verdade apenas se deixa exprimir e envolver em palavras quando é parcial. Tudo o que pode ser pensado com o pensamento ou dito com palavras é parcial, tudo é parcial, tudo é metade, a tudo falta totalidade, integralidade, unidade.
Mas o mundo, aquilo que existe à nossa volta e dentro de nós, nunca é parcial. Uma pessoa ou uma acção nunca são completamente Sansara ou completamente Nirvana, uma pessoa nunca é completamente santa ou completamente pecadora. Parece ser assim, porque estamos subjugados pela ilusão de que o tempo é algo real. O tempo não existe, e se ele não existe também não existe a aparente diferença entre mundo e eternidade, entre sofrimento e bem aventurança, entre mal e bem.
Isto aqui -disse com ar divertido- é uma pedra e um dia virá talvez a ser terra; a partir da terra virá a ser planta, ou animal ou pessoa. Anteriormente eu teria dito: "esta pedra é apenas uma pedra, é inútil, pertence ao Mundo; mas porque ela pode, no ciclo das metamorfoses, vir a ser também pessoa e espirito, por isso eu também lhe dou importância". Mas hoje em dia penso: esta pedra é pedra, mas é também animal, é também Deus. Não a venero e amo por poder a vir tornar-se nisto ou naquilo, mas porque ela é tudo, há muito tempo e para sempre.
- Siddhartha -disse- tornámo-nos homens velhos. Vejo que encontraste a paz. Reconheço que eu não a encontrei. Diz-me uma derradeira palavra, diz-me algo que eu possa compreender! . No seu olhar estavam escritas a dor e uma busca eterna, eternamente em vão.
Siddhartha viu-o e sorriu.
-Inclina-te para mim! - segredou docemente ao ouvido de Govinda - Beija-me na fronte!
Enquanto Govinda obedecia às suas palavras, perplexo mas atraído por um amor ainda maior e por um pressentimento, enquanto se inclinava e o tocava com os seus lábios uma coisa maravilhosa aconteceu. Enquanto o seu pensamento ainda se detinha nas incriveis palavras de Siddhartha, enquanto se esforçava em vão, resistindo, por afastar a ideia do tempo, por imaginar o Nirvana e o Sansara como uma unidade, enquanto um certo desprezo pelas palavras do amigo lutava com um imenso amor e respeito aconteceu o seguinte:
Deixou de ver o rosto do seu amigo Siddhartha, via em vez dele outros rostos, muitos, uma grande quantidade, um fluxo continuo de rostos, centenas, milhares que vinham e passavam, mas que pareciam estar ali todos ao mesmo tempo, rostos que se transformavam e renovavam e que no entanto eram, todos eles, Siddhartha.
Viu o rosto de um peixe, uma carpa, com a boca dolorosamente aberta, um peixe moribundo. Viu o rosto de um recém nascido, vermelho e enrugado, deformado pelas lágrimas. Viu o rosto de um assassino, viu-o cravar uma faca no corpo de uma pessoa. Viu, no mesmo segundo, este criminoso a ajoelhar-se, amarrado, e a sua cabeça a ser decepada por um golpe de espada do carrasco.
Viu todas estas formas e rostos relacionando-se de mil formas diversas, cada um deles ajudando os outros, amando-os, odiando-os negando-os, dando-os novamente à luz, cada um deles ansiava por morrer, era uma confissão dolorosa da transitoriedade da vida, mas nenhum morria, apenas se transformava, renascia, recebia um novo rosto sem que houvesse um intervalo de tempo entre um rosto e o outro.
Fez uma profunda vénia, as lágrimas corriam-lhe pelo rosto velho sem que ele as sentisse, o sentimento de um amor efusivo, de adoração humilde, queimava como fogo no seu coração.
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